terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Vídeoárbitro

O futebol português é tão caricato quanto previsível. Quando a Federação Portuguesa de Futebol anunciou a intenção de implementação da vídeoarbitragem em Portugal, escrevi uma crónica em que argumentei em prol dessa decisão, mas deixei uma advertência aos que pensavam que o recurso a tecnologias de apoio à decisão dos árbitros resolveria os problemas da arbitragem portuguesa e, sobretudo, aos que, ingenuamente, julgavam que o ambiente conflituoso em torno da arbitragem se dissiparia.

Com vídeoarbitragem, o futebol português não deixaria de ser o futebol português, isto é, uma actividade na qual pululam os agitadores e, simultaneamente, impera a incapacidade para o reconhecimento do mérito dos adversários. Chega a ser quase irrelevante ganhar ou perder, desde que se garanta que a percepção da justiça ou injustiça dos triunfadores prevaleça em quem ganha e perde, respectivamente. De alguma forma, todos ganham e talvez seja melhor assim! Além disso, persistiriam os lances de difícil análise, sujeitos à interpretação dos árbitros, árbitros assistentes e vídeoárbitros, e as análises de observadores supostamente isentos (como se a maior parte não tenha a sua agenda, seja devido a preferência clubística ou posicionamento no sector da arbitragem), já para não mencionar o barulho criado com o objectivo do condicionamento da actuação futura dos diversos agentes.

Importa, por isso e antes de mais, perceber que a vídeoarbitragem, enquanto instrumento de apoio à decisão dos árbitros, é indiscutivelmente útil. São já inúmeros os exemplos em que esta ferramenta corrigiu más decisões da equipa de arbitragem no campo ou confirmou boas decisões, porém passíveis de contestação aparentemente legítima no campo. Ainda recentemente, no Paços de Ferreira – Boavista (como, entre tantos outros, no Sporting – Estoril nos descontos), a equipa caseira adiantou-se no marcador nos primeiros minutos. Se não fosse o vídeoárbitro, o tento inaugural da partida teria sido erradamente anulado devido a um pretenso fora-de-jogo. Como este ocorreram já diversos casos que legitimam a utilização do vídeoárbitro. Porém, temos assistido igualmente a decisões que levantam questões pertinentes quanto à utilidade desta ferramenta e que, do meu ponto de vista, derivam da má concepção do protocolo de actuação do vídeoárbitro. O FC Porto – Benfica é um bom exemplo, em que subsistiram dúvidas quanto ao acerto de diversas decisões da equipa de arbitragem.

Para resumir, evoco apenas dois lances que expõem a necessidade de melhoria do protocolo de utilização do vídeoárbitro: Uma entrada violenta de Felipe sobre Jonas; O lance mal anulado por fora-de-jogo ao ataque portista que poderia ter resultado em golo.

Quanto ao primeiro lance, o defeito do protocolo reside na não interferência do vídeoárbitro em lances de interpretação e difícil ajuizamento do árbitro, o que julgo não fazer qualquer sentido. O princípio de não interferência neste tipo de lances, além da dificuldade em se aquilatar se o vídeoárbitro deverá ou não informar o árbitro que o lance deverá ser revisto, coloca o vídeoárbitro numa posição em que contesta a decisão do árbitro. No enquadramento actual, as decisões finais são do árbitro de campo, mas fortemente influenciadas pelo contributo do vídeoárbitro. Logo, e até para evitar situações em que o vídeoárbitro prefira não intervir por alguma forma de deferência em relação ao árbitro, será desejável que se permita ao vídeoárbitro questionar as decisões do árbitro sempre que entender, ficando claro que o objectivo é providenciar uma ferramenta ao árbitro para a tomada de decisões, ao invés de o colocar numa posição de alguma forma fragilizada. Para tal é essencial que a decisão (definitiva) seja tomada pelo árbitro através do visionamento das imagens sempre que haja alguma dúvida. No caso particular do tal lance de Felipe, Jorge Sousa entendeu que não deveria admoestar o central portista com um cartão. À luz do protocolo, o vídeoárbitro não interpelou o árbitro para o fazer ou rever o lance e decidir. Após o jogo, todos os analistas consideraram que o jogador deveria ter recebido um cartão, só divergindo na cor. O amarelo teria condicionado a actuação do jogador. O vermelho a da equipa.

No segundo lance referido, houve um fora-de-jogo mal assinalado que interrompeu uma jogada de perigo iminente para a baliza benfiquista. Na continuação do lance, a bola chegou até a entrar na baliza, mas é errada a afirmação de que existiu um golo mal anulado. O protocolo do vídeoárbitro, neste tipo de lances, não chegou a ser aplicado. As regras ditam que o árbitro, ao ter uma indicação do árbitro assistente de que há fora-de-jogo, deverá aguardar pelo desfecho da jogada. Por desfecho da jogada entende-se o primeiro remate após a indicação de fora-de-jogo, o qual foi defendido pelo guardião benfiquista Varela. O vídeoárbitro já não poderia ser utilizado na recarga ao primeiro remate. O mesmo se passara na jornada anterior, no Benfica – Estoril, em que uma jogada em tudo semelhante (a diferença é que o primeiro remate foi à barra) poderia ter resultado num golo benfiquista (também Jonas chegou a marcar). Com o vídeoárbitro, esta regra deveria ter sido melhorada, podendo-se estender o conceito de “desfecho da jogada” e recorrer-se, sempre que necessário, à consulta de imagens para a tomada de decisão (por exemplo, a jogada não terminaria enquanto a equipa adversária se limitasse a tentar impedir que a bola entrasse na sua baliza).

Porém, o constrangimento mais relevante no vídeoárbitro relativamente aos lances de fora-de-jogo reside na avaliação do trabalho dos árbitros assistentes. Um erro posteriormente corrigido devido a indicação do vídeoárbitro conta como um erro. Ou seja, para efeitos de avaliação do árbitro assistente, é como se o vídeoárbitro não existisse. Percebe-se a intenção, pois um erro é um erro, no entanto julgo que, existindo o vídeoárbitro, deveria convidar-se os árbitros assistentes a não sentirem tanta necessidade de se protegerem. O problema é o seguinte: Um lance em fora-de-jogo tem mais probabilidades de ser transformado em golo e os árbitros sabem-no, enquanto um fora-de-jogo mal assinalado interrompe a jogada ou levanta dúvidas se seria golo mesmo que a bola entre na baliza porque, geralmente, os defesas e o guarda-redes desistem do lance. E isto faz toda a diferença na gravidade do erro, contrariando as indicações dadas aos árbitros assistentes que, em caso de dúvida, deverão beneficiar a equipa atacante.

Para tornear este problema, bastaria seguir o que tem sido feito noutras modalidades que adoptaram o vídeoárbitro há alguns anos. No râguebi e no futebol americano, existe o conceito da bandeira. Em poucas palavras, há uma indicação de falta mas o jogo continua. Se o lance for determinante, exige-se a revisão das imagens televisivas após a sua conclusão. No basquetebol, esta possibilidade aplica-se às dúvidas quanto aos lançamentos de dois ou três pontos. Se um dos árbitros tiver dúvidas se o lançamento convertido tiver sido de dois ou três pontos, dá uma indicação aos oficiais de mesa para que, na paragem de jogo seguinte, o lance seja revisto. A vantagem está em permitir que a equipa que sofreu o cesto possa repor a bola rapidamente em jogo e que não seja prejudicada devido à dificuldade dos árbitros em avaliarem o lance anterior, além, evidentemente, da defesa da verdade desportiva.

Porque é de verdade desportiva que trata o recurso a tecnologias de apoio à decisão dos árbitros. Se, no fim de uma competição, se chegasse à conclusão que o vídeoárbitro só teria tido aplicabilidade num único lance, já seria positivo. E está à vista que, não obstante os defeitos do protocolo implementado e eventuais erros aqui ou ali, foram vários os lances que foram bem ajuizados em cada uma das jornadas.


Entretanto, enquanto o futebol português se entretém a discutir o acessório, chamo a atenção para o que City Football Group tem vindo a fazer e as repercussões que a sua actuação no futebol poderá vir a ter na forma como o futebol será organizado no futuro. Não se trata apenas da empresa que detém o capital do Manchester City, mas de um grupo que controla directa ou indirectamente sete clubes, além de outras valências futebolísticas. E não é caso único, bastando referir a Red Bull e os seus quatro clubes. Qual será o primeiro clube ou SAD portuguesa a integrar um destes grupos? Fica a questão e talvez tema para uma próxima crónica…

Vida Económica - 22/12/2017

Números da semana (171)

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