O futebol português é tão caricato quanto previsível. Quando
a Federação Portuguesa de Futebol anunciou a intenção de implementação da
vídeoarbitragem em Portugal, escrevi uma crónica em que argumentei em prol
dessa decisão, mas deixei uma advertência aos que pensavam que o recurso a
tecnologias de apoio à decisão dos árbitros resolveria os problemas da
arbitragem portuguesa e, sobretudo, aos que, ingenuamente, julgavam que o
ambiente conflituoso em torno da arbitragem se dissiparia.
Com vídeoarbitragem, o futebol português não deixaria de ser
o futebol português, isto é, uma actividade na qual pululam os agitadores e,
simultaneamente, impera a incapacidade para o reconhecimento do mérito dos
adversários. Chega a ser quase irrelevante ganhar ou perder, desde que se
garanta que a percepção da justiça ou injustiça dos triunfadores prevaleça em
quem ganha e perde, respectivamente. De alguma forma, todos ganham e talvez
seja melhor assim! Além disso, persistiriam os lances de difícil análise, sujeitos
à interpretação dos árbitros, árbitros assistentes e vídeoárbitros, e as
análises de observadores supostamente isentos (como se a maior parte não tenha
a sua agenda, seja devido a preferência clubística ou posicionamento no sector
da arbitragem), já para não mencionar o barulho criado com o objectivo do
condicionamento da actuação futura dos diversos agentes.
Importa, por isso e antes de mais, perceber que a
vídeoarbitragem, enquanto instrumento de apoio à decisão dos árbitros, é
indiscutivelmente útil. São já inúmeros os exemplos em que esta ferramenta
corrigiu más decisões da equipa de arbitragem no campo ou confirmou boas
decisões, porém passíveis de contestação aparentemente legítima no campo. Ainda
recentemente, no Paços de Ferreira – Boavista (como, entre tantos outros, no
Sporting – Estoril nos descontos), a equipa caseira adiantou-se no marcador nos
primeiros minutos. Se não fosse o vídeoárbitro, o tento inaugural da partida
teria sido erradamente anulado devido a um pretenso fora-de-jogo. Como este
ocorreram já diversos casos que legitimam a utilização do vídeoárbitro. Porém,
temos assistido igualmente a decisões que levantam questões pertinentes quanto
à utilidade desta ferramenta e que, do meu ponto de vista, derivam da má
concepção do protocolo de actuação do vídeoárbitro. O FC Porto – Benfica é um
bom exemplo, em que subsistiram dúvidas quanto ao acerto de diversas decisões
da equipa de arbitragem.
Para resumir, evoco apenas dois lances que expõem a
necessidade de melhoria do protocolo de utilização do vídeoárbitro: Uma entrada
violenta de Felipe sobre Jonas; O lance mal anulado por fora-de-jogo ao ataque
portista que poderia ter resultado em golo.
Quanto ao primeiro lance, o defeito do protocolo reside na
não interferência do vídeoárbitro em lances de interpretação e difícil
ajuizamento do árbitro, o que julgo não fazer qualquer sentido. O princípio de
não interferência neste tipo de lances, além da dificuldade em se aquilatar se
o vídeoárbitro deverá ou não informar o árbitro que o lance deverá ser revisto,
coloca o vídeoárbitro numa posição em que contesta a decisão do árbitro. No
enquadramento actual, as decisões finais são do árbitro de campo, mas
fortemente influenciadas pelo contributo do vídeoárbitro. Logo, e até para
evitar situações em que o vídeoárbitro prefira não intervir por alguma forma de
deferência em relação ao árbitro, será desejável que se permita ao vídeoárbitro
questionar as decisões do árbitro sempre que entender, ficando claro que o
objectivo é providenciar uma ferramenta ao árbitro para a tomada de decisões,
ao invés de o colocar numa posição de alguma forma fragilizada. Para tal é
essencial que a decisão (definitiva) seja tomada pelo árbitro através do
visionamento das imagens sempre que haja alguma dúvida. No caso particular do
tal lance de Felipe, Jorge Sousa entendeu que não deveria admoestar o central
portista com um cartão. À luz do protocolo, o vídeoárbitro não interpelou o
árbitro para o fazer ou rever o lance e decidir. Após o jogo, todos os
analistas consideraram que o jogador deveria ter recebido um cartão, só
divergindo na cor. O amarelo teria condicionado a actuação do jogador. O
vermelho a da equipa.
No segundo lance referido, houve um fora-de-jogo mal
assinalado que interrompeu uma jogada de perigo iminente para a baliza
benfiquista. Na continuação do lance, a bola chegou até a entrar na baliza, mas
é errada a afirmação de que existiu um golo mal anulado. O protocolo do
vídeoárbitro, neste tipo de lances, não chegou a ser aplicado. As regras ditam
que o árbitro, ao ter uma indicação do árbitro assistente de que há
fora-de-jogo, deverá aguardar pelo desfecho da jogada. Por desfecho da jogada
entende-se o primeiro remate após a indicação de fora-de-jogo, o qual foi
defendido pelo guardião benfiquista Varela. O vídeoárbitro já não poderia ser
utilizado na recarga ao primeiro remate. O mesmo se passara na jornada
anterior, no Benfica – Estoril, em que uma jogada em tudo semelhante (a
diferença é que o primeiro remate foi à barra) poderia ter resultado num golo
benfiquista (também Jonas chegou a marcar). Com o vídeoárbitro, esta regra
deveria ter sido melhorada, podendo-se estender o conceito de “desfecho da
jogada” e recorrer-se, sempre que necessário, à consulta de imagens para a
tomada de decisão (por exemplo, a jogada não terminaria enquanto a equipa
adversária se limitasse a tentar impedir que a bola entrasse na sua baliza).
Porém, o constrangimento mais relevante no vídeoárbitro
relativamente aos lances de fora-de-jogo reside na avaliação do trabalho dos
árbitros assistentes. Um erro posteriormente corrigido devido a indicação do
vídeoárbitro conta como um erro. Ou seja, para efeitos de avaliação do árbitro
assistente, é como se o vídeoárbitro não existisse. Percebe-se a intenção, pois
um erro é um erro, no entanto julgo que, existindo o vídeoárbitro, deveria
convidar-se os árbitros assistentes a não sentirem tanta necessidade de se
protegerem. O problema é o seguinte: Um lance em fora-de-jogo tem mais
probabilidades de ser transformado em golo e os árbitros sabem-no, enquanto um
fora-de-jogo mal assinalado interrompe a jogada ou levanta dúvidas se seria
golo mesmo que a bola entre na baliza porque, geralmente, os defesas e o
guarda-redes desistem do lance. E isto faz toda a diferença na gravidade do
erro, contrariando as indicações dadas aos árbitros assistentes que, em caso de
dúvida, deverão beneficiar a equipa atacante.
Para tornear este problema, bastaria seguir o que tem sido
feito noutras modalidades que adoptaram o vídeoárbitro há alguns anos. No
râguebi e no futebol americano, existe o conceito da bandeira. Em poucas
palavras, há uma indicação de falta mas o jogo continua. Se o lance for
determinante, exige-se a revisão das imagens televisivas após a sua conclusão.
No basquetebol, esta possibilidade aplica-se às dúvidas quanto aos lançamentos
de dois ou três pontos. Se um dos árbitros tiver dúvidas se o lançamento
convertido tiver sido de dois ou três pontos, dá uma indicação aos oficiais de
mesa para que, na paragem de jogo seguinte, o lance seja revisto. A vantagem
está em permitir que a equipa que sofreu o cesto possa repor a bola rapidamente
em jogo e que não seja prejudicada devido à dificuldade dos árbitros em
avaliarem o lance anterior, além, evidentemente, da defesa da verdade desportiva.
Porque é de verdade desportiva que trata o recurso a
tecnologias de apoio à decisão dos árbitros. Se, no fim de uma competição, se
chegasse à conclusão que o vídeoárbitro só teria tido aplicabilidade num único
lance, já seria positivo. E está à vista que, não obstante os defeitos do
protocolo implementado e eventuais erros aqui ou ali, foram vários os lances
que foram bem ajuizados em cada uma das jornadas.
Entretanto, enquanto o futebol português se entretém a
discutir o acessório, chamo a atenção para o que City Football Group tem vindo
a fazer e as repercussões que a sua actuação no futebol poderá vir a ter na
forma como o futebol será organizado no futuro. Não se trata apenas da empresa
que detém o capital do Manchester City, mas de um grupo que controla directa ou
indirectamente sete clubes, além de outras valências futebolísticas. E não é
caso único, bastando referir a Red Bull e os seus quatro clubes. Qual será o
primeiro clube ou SAD portuguesa a integrar um destes grupos? Fica a questão e
talvez tema para uma próxima crónica…
Vida Económica - 22/12/2017