Desde há vários anos que sigo atentamente o tema “futebol
negócio” e não me recordo de este ter provocado tamanha agitação nas redes
sociais como a que se seguiu à divulgação do oitava edição do relatório
produzido pela UEFA no âmbito do fair play financeiro (“The European Club
Footballing Landscape”). Nas plataformas online de várias publicações, não só
as desportivas, tornou-se no artigo mais lido do dia. A informação constante no
relatório tem por base os relatórios e contas dos clubes, os quais são
utilizados pela UEFA para o licenciamento dos clubes no âmbito da participação
nas provas por si organizadas e, também, para a avaliação do cumprimento dos
critérios estabelecidos no chamado fair play financeiro.
Contribuiu para tal o tom alarmista com que foi noticiada
uma única tabela, em 130 páginas, sobre dívida líquida e em que o Benfica
ocupou a segunda posição em 2014/15. As finanças do futebol europeu constituem
o tema de fundo. O curioso é que, da parte dos clubes, não foi encontrado o
devido eco, com o Benfica a limitar-se a afirmar que “não está preocupado nem
tem muitos comentários a fazer” e o presidente leonino, Bruno de Carvalho,
através da sua página oficial no Facebook, a ficar-se por uma constatação de se
tratar de “mais uma prova de que o trabalho feito com esforço, dedicação e devoção
é sempre recompensado”, chamando a atenção para dois gráficos referentes ao
crescimento da média de assistências e ao lucro líquido, nos quais consta o
Sporting. Também Angelino Ferreira, antigo administrador da FC Porto, SAD, se
pronunciou, em entrevista à RTP, sobre o assunto. No entanto, desvalorizou o indicador
em causa por ter relevância limitada se analisado isoladamente, aliás conforme
está explicado no relatório.
O “futebol negócio”, há que reconhecer, é mal tratado pela
comunicação social portuguesa. Geralmente, as notícias resumem-se à transcrição
das conclusões dos relatórios e das declarações dos responsáveis dos clubes,
quase sempre sem qualquer escrutínio. Para agudizar esta lacuna, não bastas
vezes se confundem conceitos técnicos, desinformando assim os leitores, já de
si pouco versados no tema. E depois surge a clubite, influenciada pelo momento
desportivo, com os adeptos a formarem opinião de acordo com os seus interesses.
Uma consulta rápida às caixas de comentários das peças relativas a este tema
permite percebê-lo com clareza. A generalidade dos benfiquistas desvalorizou o
assunto, evocando os sucessos desportivos posteriores à época em análise. Em
sentido contrário, a maior parte dos adeptos dos seus rivais procurou encontrar
nestes dados a justificação para os resultados desportivos ocorridos no passado
recente, desresponsabilizando assim implicitamente os seus clubes da penúria de
títulos que os tem assolado.
Ora, a notícia de que o Benfica “é o segundo clube com maior
dívida da Europa” não corresponde à realidade nem sequer é essa a informação
constante no relatório da UEFA. Na realidade, o gráfico incide sobre dívida
líquida, um indicador que, no caso do relatório em apreciação, é diferente do
clássico. Ao endividamento financeiro deduzido das disponibilidades, deverá
ainda acrescentar-se ou retirar-se o saldo das transferências de passes de
atletas por pagar ou receber. Além do mais, os dados referem-se a 2014/15 e,
portanto, o exercício seguinte já terminou e passou, inclusivamente, um
semestre do corrente. As notícias, ao apresentarem o estudo como se contivesse
factos ocorridos no presente, induziram os leitores em erro. A questão temporal
parece um mero detalhe, mas os factos subsequentes são de tal forma relevantes
(transferências de jogadores, resultados líquidos, etc.), que o ranking, em
2015/16, poderá ser totalmente diferente em termos globais. No caso nacional,
no que me foi possível estimar, a Benfica, SAD apresentará uma redução na
dívida líquida (definida pela UEFA) de cerca de 11 milhões de euros, enquanto
que as SAD do Sporting e Porto terão um aumento de um montante a rondar os 20 e
os 30 milhões de euros, respectivamente. Ademais, conforme já referi em
diversas crónicas, é necessária alguma cautela quando nos dedicamos a comparar
indicadores financeiros das SAD dos “três grandes”. Neste caso em particular,
há que ter em conta o aumento de capital da SAD portista ocorrido há poucos
anos, nomeadamente pela incorporação de 47% do capital da Euroantas, a
sociedade que detém o estádio do Dragão. Tal significa que 53% do passivo
relacionado com a construção do estádio, composto sobretudo, senão mesmo quase
totalmente, por endividamento bancário, não faz parte das contas da SAD. Não é
o caso das SAD benfiquista e sportinguista, pois estas, também devido a
operações de aumento de capital, passaram a deter a 100% as sociedades donas
dos estádios. No caso leonino, há a questão das VMOC. Ao transformar
endividamento financeiro em capital, a situação é melhor do que seria,
principalmente se os riscos de perda da maioria do capital da SAD forem
ignorados.
Também os maus resultados alcançados em 2015/16 ao nível das
contas pelas SAD portista (58,4M€ negativos) e sportinguista (31,9M€ negativos)
poderão ter motivado a quase inexistência de comentários sobre a propalada
“segunda maior dívida europeia” do Benfica por parte de responsáveis rivais. A
agudizar o cenário, o Benfica juntou ao sucesso desportivo alcançado, que é o
que realmente importa aos adeptos, um lucro de 20,4 milhões de euros, além de
que, já em 2016/17, no momento em que o relatório da UEFA foi publicado, as
expectativas de revalidação do título nacional são elevadas e, entre os três, é
o único que se mantém na Taça de Portugal e Taça da Liga. Acresce que no
futebol portista e sportinguista ocorreram factos atípicos em 2014/15. No F.C.
Porto atingiu-se um volume de transferências extraordinário de cerca de 100
milhões de euros. E, devido à forma como contabiliza os prémios da Liga dos
Campeões (no momento da aquisição do direito a receber), registou, nessa
temporada, dois acessos à fase de grupos. Quanto ao Sporting, o lucro obtido em
2014/15 foi fortemente influenciado pela restruturação financeira, nomeadamente
pela “actualização de passivos não correntes”, em cerca de 12 milhões de euros,
que gerou a acusação, por parte dos rivais, de perdão de dívida, e sobretudo a
alienação do passe de Marcos Rojo por 20 milhões de euros. Então, não tinha
sido ainda constituída qualquer provisão para o caso de as pretensões
sportinguistas no diferendo com a Doyen serem negadas, como acabaram por ser,
pelos tribunais, e o proveito da venda foi registado na sua totalidade.
Porém, a deficiente interpretação do conteúdo do relatório e
subsequente má informação prestada pela generalidade da comunicação social não
se ficou por aqui. Por exemplo, num quadro referente ao crescimento da média de
espectadores, em que o Sporting ficou colocado num assinalável nono lugar, foi
transformado por alguns meios na nona melhor média de espectadores na Europa.
Outro caso tem a ver com a relação entre dívida líquida, no qual o valor do
Benfica foi 3,3, e receitas operacionais. Não encontrei uma única notícia que
explicasse que a UEFA não considerou as transferências de passes de atletas
para chegar a estes valores e muito menos encontrei o rácio aplicado a Porto e
Sporting. A questão das transferências de atletas é particularmente
significativa, pois é notório que estas são parte inalienável do modelo de
negócio do futebol. No caso português, e este fica bem patente no relatório da
UEFA, são essenciais à competitividade dos clubes a nível europeu e até mesmo à
sua sobrevivência face aos níveis de custos e endividamento. Em 2014/15, no que
me foi possível apurar, a FC Porto, SAD, neste rácio, teve o valor mais baixo
entre os “três grandes”, a rondar o 1,4. O Sporting atingiu 2,35, embora, se os
127 milhões de euros de VMOC fossem considerados, ascenderia a cerca de 4,5. Em
2015/16, os valores foram mais equilibrados. 2,6; 2,2 (4,1 sem VMOC) e 2,1 para
Benfica, Sporting e Porto, respectivamente. Finalmente, outro exemplo: Relação
entre activos de longo prazo receitas operacionais (sem transferências). Mais
uma vez, a confusão de conceitos foi gritante, embora o relatório seja
explícito na explicação do que a UEFA considerou serem activos de longo prazo:
Somatório dos activos tangíveis e intangíveis de longo prazo, mas os segundos
incluem apenas o valor contabilístico dos passes dos atletas. O Benfica teve,
neste indicador, 1,3. Fazendo as contas para Porto e Sporting, o primeiro teve
cerca de 0,65 e o segundo 3,4 (ou 6,6 sem VMOC).
Qual o objectivo da UEFA em ignorar os proveitos decorridos
da alienação de passes de atletas em exercícios comparativos que incluam este
tipo de indicadores, prejudicando, grosso modo, a posição nestes rankings dos
clubes de países de outros campeonatos que não os das cinco maiores ligas? Ou
de não considerar os suprimentos, por exemplo, tão típicos em Inglaterra ou
Itália… Fica a questão…
Vida Económica - 20/1/2017