Quando quero referir-me a algo ou alguém que não cabe no
tema da minha crónica, geralmente remeto-o para o último parágrafo, quase à
laia de notas finais. No entanto, hoje decidi inverter essa tendência estilística
e começo por um elogio aos diários desportivos, em particular ao jornal A Bola.
Para tal terei que recuar dois anos e resumir significativamente o que escrevi
em Agosto de 2015.
Na altura critiquei os diários desportivos por dedicarem
quase exclusivamente as suas primeira páginas ao futebol. Referi as razões que
julgo estarem na base dessa opção editorial e sublinhei que as compreendo –
nomeadamente a necessidade de vendas no curto prazo, o que lhes coarcta o
estímulo de novos públicos no futuro para que eventualmente estanquem a perda
de leitores. Raros, ou mesmo inexistentes, terão sido os exemplos de uma
primeira página desde então em que o destaque não tenha sido dado ao futebol e,
por isso, sinto-me obrigado, embora sem qualquer favor, a louvar o A Bola por,
na passada segunda-feira, nos ter presenteado com a parangona “rainha do
sofrimento” e uma imagem de Inês Henriques, que se sagrou campeã do mundo e
bateu o recorde mundial dos 50 Kms marcha, do topo ao fundo da sua primeira
página. Nas restantes chamadas de capa (cinco), constou o futebol e qualquer
delas, num dia normal, poderia ter sido o tema de capa principal. Também o
Record, no terço superior da primeira página, destacou o feito de Inês
Henriques, e o Jogo, embora mais comedido e também no topo, o fez. Porém, a
novidade (nestes últimos anos) esteve na primeira página quase unicamente
dedicada a um assunto que não o futebol pelo jornal A Bola, daí o meu elogio
público, esperando que as suas vendas, nesse dia, não tenham, pelo menos, sido
menores que o costume.
Mas quem tem a gentileza de ler as minhas crónicas sabe que
também costumo criticar a imprensa desportiva pela pouca atenção prestada ao
lado do negócio do futebol e quase nunca à antecipação de cenários originados
por determinados acontecimentos nesse domínio. Na semana passada tivemos mais
um destes casos: o anúncio do lançamento, em vários países (Brasil, México,
Argentina, Estados Unidos da América, Espanha, Itália, Alemanha, França e
Inglaterra), de uma plataforma tecnológica que poderá reconfigurar o consumo do
desporto enquanto produto televisivo, o Sportflix.
À semelhança do Netflix numa fase inicial (entretanto já
evoluiu), o Sportflix não terá produção própria, limitando-se a retransmitir
produtos de outras estações. Promete incluir na sua oferta alguns dos conteúdos
mais apelativos, como os campeonatos de futebol de Inglaterra, França, Itália,
Alemanha e Espanha (entre outros, mas não o português…), ou a NBA, a NFL, o UFC,
a Fórmula 1 e os Jogos Olímpicos. Terá uma mensalidade de 17€ para os clientes
domésticos e 21€ para empresas e poderá ser acedido de qualquer aparelho com
acesso à internet (por exemplo, o pacote premium da Sporttv, na NOS, tem um
custo mensal de 28€).
Tendo em conta os novos hábitos de consumo de produtos
televisivos, em particular dos mais jovens, cuja propensão para o fazerem
através de dispositivos móveis é notória, o Sportflix, se conseguir realmente
disponibilizar os conteúdos prometidos (há dias surgiu o comunicado da Fox
Sports América Latina, que alega ter 61 milhões de clientes em 19 países, a
desmentir categoricamente quaisquer contactos ou negociação com a Sportflix
para a cedência de direitos televisivos), poderá tornar-se rapidamente, se não
encarada como tal já, na ameaça mais significativa aos canais televisivos
dedicados ao desporto.
É previsível que, numa fase inicial e à semelhança do que se
sucedeu com a Netflix, haja resistência por parte dos maiores operadores, não
cedendo conteúdos e tentando inviabilizar o acesso em vários países. Porém,
partindo do pressuposto que a Sportflix terá músculo financeiro para criar uma
base de clientes que lhe permita exponenciar a sua capacidade de investimento,
mais cedo ou mais tarde tentará intrometer-se na disputa pelos conteúdos e
assumirá as despesas de produção. O mais provável é que esse passo, a ser dado,
vise nichos de mercado numa primeira instância, mas uma vez suplantadas as
dificuldades iniciais, o futuro tornar-se-á imprevisível.
Até porque, apesar de não ter encontrado qualquer referência
na comunicação social portuguesa, já existe um operador deste género lançado há
um ano, a DAZN, disponível na Alemanha, Áustria, Suíça e, recentemente, Canadá
e Japão (anuncia ter transmitido em directo cerca de 8000 eventos desportivos).
Se no Canadá, no qual só há um mês passou a estar disponível, se limitará ao
futebol americano numa fase inicial, na Alemanha tem as ligas de futebol inglesa,
espanhola, francesa e italiana (além de resumos da liga alemã) como produtos
estrela. De acordo com uma notícia, a partir de 2018/19 transmitirá também a
Liga dos Campeões, enquanto que, no Japão, terá a liga japonesa de futebol.
A estratégia da DAZN é assumida: Criar uma base de clientes
que lhe permita, juntamente com anunciados dois biliões de dólares reservados
para a sua segunda fase de desenvolvimento, proceder à adquisição de conteúdos
exclusivos. A Netflix, que em Junho anunciou ter alcançado 100 milhões de
utilizadores, também começou timidamente, porém foi com produtos exclusivos,
como as séries “House of cards”, “Orange is the new black”, “Narcos” ou
“Stranger things”, entre outras, que obteve um grande impulso nas suas vendas,
não só pelas subscrições do serviço como até pela revenda das séries, como é o
caso da “House of Cards” à SIC e posteriormente à TVSéries em Portugal.
Fazendo a ponte para a conjuntura futebolística nacional,
ressaltam dois aspectos pouco ou nada focados. Por um lado, a cedência dos
direitos televisivos por parte dos clubes às operadoras que, não obstante os
elevados montantes conseguidos tendo em conta os contratos anteriores (Porto e
Sporting quase triplicaram a sua facturação e Benfica quintuplicou
relativamente ao período anterior ao que explorou por sua conta os seus
direitos televisivos), são todos de longa duração (Benfica – de 2016/17 até 2025/26,
Porto e Sporting de 2018/19 até 2027/28) e incluem todas as plataformas, o que
significa que, dada a evolução tecnológica cada vez mais acelerada nesta área,
representa um risco significativo no que concerne à comparação entre facturação
e potencial de facturação, nomeadamente nos últimos anos de vigência destes
contratos.
Por outro lado, Porto e Sporting já anteciparam receitas de
direitos televisivos cuja entrada em vigor ainda nem sequer ocorreu: No caso
portista, foi a antecipação de 18,6M€ a receber da Altice, com início em
31/12/2018, em dez prestações mensais de 2.666.667 euros (relatórios e contas
do 1º semestre de 2016/17); No caso do Sporting, tendo por base o relatório do
1º semestre de 2016/17, esse montante ascendeu a 4,75 milhões de euros (“A
rúbrica de cedência de créditos futuros decorre do montante não corrente
relacionado com antecipação de receitas sem recurso, do contrato celebrado com
a NOS, realizada com uma entidade bancária no primeiro trimestre da presenta
época”). No relatório seguinte, o montante desta rúbrica cresceu para 21,057
milhões de euros, se bem que não explicita tratar-se de direitos televisivos
(“A rúbrica de cedência de créditos futuros decorre do montante não corrente
relacionado com antecipação de receitas sem recurso”), embora seja o mais
provável, na minha opinião.
A antecipação de receitas operacionais indicia dificuldades
de tesouraria e faz transparecer um investimento excessivo face à capacidade de
angariação de receitas. Se o sucesso desportivo acontecer, é provável que as
receitas cresçam (em que medida é outra questão), caso contrário… Mas o
problema não se esgota por aqui. Perpetuando-se em crescendo, como uma bola de
neve, os gastos acima dos proveitos, há-de chegar uma altura em que não mais
poderão ser antecipadas receitas de direitos televisivos (porque já o foram na
sua totalidade), a não ser que um novo contrato, ou a extensão do vigente, seja
negociado. Como é evidente, nesse contexto, a posição negocial do(s) clube(s) estará
enfraquecida e as consequências são, ao contrário do futuro das plataformas
online de distribuição de conteúdos desportivos, bastante previsíveis. Basta
ver o que aconteceu ao Benfica quando vendeu à pressa os direitos televisivos
em 1993 e, anos mais tarde, quando durante anos recebeu cerca de metade dos
rivais por optar por não renegociar o contrato então em vigor e esperar por uma
posição negocial mais forte. É certo que lhe permitiu tornar a BTV num canal de
subscrição e hipervalorizar, face ao passado, os seus direitos televisivos (e
os dos seus rivais), mas os anos de espera – poucos títulos – não foram os mais
felizes para os seus adeptos.
Vida Económica - 25/8/2017