segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Em defesa da arbitragem

Numa entrevista recente ao diário alemão Bild, o director técnico da FIFA, Marco Van Basten, referiu oito medidas que, na sua opinião, poderiam ser tomadas para que o futebol fosse “melhorado e mais honesto”. Van Basten não é um mero director-técnico. O seu percurso de futebolista ao serviço de Ajax, Milan e selecção holandesa, em que se firmou como um dos melhores de sempre da história do futebol, e até a experiência enquanto treinador (Holanda, Ajax, Heerenveen, AZ Alkmaar) concedem-lhe o estatuto de voz autorizada e a sua actual função possibilita-lhe influenciar a forma como o futebol é organizado.

As medidas preconizadas foram as seguinte : Fim do fora de jogo (a título experimental); Penalizações de tempo em vez de cartões amarelos (jogadores excluídos temporariamente); Shootout em vez de grandes penalidades; Expulsão por acumulação de faltas; Últimos dez minutos com o relógio a parar; Calendário mais reduzido; Só o capitão pode protestar com o árbitro; Mais substituições (caso haja prolongamento). Ou seja, quatro delas estão relacionadas directa ou indirectamente com a arbitragem. E compreende-se… Os árbitros são o elo mais fraco do futebol.

Quase sem adeptos e, pela função que desempenham, com a capacidade de condicionar o desfecho de uma partida, os árbitros são frequentemente instrumentalizados por dirigentes e treinadores, como forma de justificação dos insucessos das equipas que dirigem e treinam. São um alvo fácil, no fundo. Mesmo os poucos que admiram o seu trabalho – em regra, pessoas do sector da arbitragem – raramente verbalizam a sua admiração, seja por lutas no sector ou por necessidade de afirmação pessoal enquanto comentadores na comunicação social. O erro é sempre o objecto da apreciação pública e raramente se evidencia suficientemente, como merece, uma boa arbitragem.

Apesar das notórias dificuldades que as regras do jogo representam para o trabalho dos árbitros, estes são, no futebol profissional e quando comparados com outras actividades, muito bem pagos e, por isso, sujeitos ao escrutínio público. Porém, mesmo tendo em conta a tal dificuldade no desempenho da função induzida pelas regras, há aspectos que considero negativos e que poderão ser melhorados. Cingindo-me ao futebol português, parece-me evidente a incapacidade generalizada dos árbitros em gerirem as partidas, nomeadamente no que diz respeito ao capítulo disciplinar e ao anti-jogo.

Mas como bem diz o título da crónica, esta trata da defesa da arbitragem. Van Basten avançou com penalizações de tempo em vez de cartões amarelos, expulsão por acumulação de faltas, paragem do relógio nos últimos dez minutos e exclusividade dos protestos conferida aos capitães de equipa. Por outras palavras, Van Basten reconhece que o fairplay é, grosso modo, “uma treta”. Jogadores e treinadores socorrem-se das regras e da inabilidade dos árbitros para condicionar os jogos, evoluindo a forma como o fazem com o mesmo ritmo da evolução física e táctica do jogo. As instâncias do futebol, pelo contrário, revelam inércia quanto à necessidade de adaptação à evolução do futebol e, muitas das vezes, avançam o argumento inqualificável de que o erro faz parte do jogo, assim como uma suposta necessidade de “democratização” do futebol (nem todos os países e divisões poderiam utilizar os meios tecnológicos, por exemplo) que, por outras palavras, não mais é do que um nivelamento por baixo da qualidade da arbitragem.

Numa indústria que movimenta biliões de euros anualmente, será, no mínimo, anacrónico, constatar que o erro faz parte do jogo e pouco ou nada se fazer para minimizar as ocorrências do mesmo. Os anos de atraso na aplicação (experimental) da tecnologia “olho de falcão” na linha de baliza foram imorais (no ténis já é utilizado desde 2001, no futebol foi testada pela primeira vez em 2012). O alargamento da equipa de arbitragem (com árbitros de baliza, que ajudam mas não resolvem o problema de um só árbitro ter que cobrir uma área imensa) fica ainda aquém de outras modalidades. O controlo do tempo de jogo é quase arbitrário e tendencialmente favorável às equipas que procuram encurtar o tempo útil de jogo. A aplicação dos cartões amarelo e vermelho é nitidamente subjectiva. Ou ainda, só para dar um exemplo caricato, é incompreensível que um árbitro, ao admoestar um jogador com um cartão amarelo, tenha que perder tempo com o seu registo.

O conservadorismo característico do futebol é pernicioso para a modalidade e nem percebo porque as raras alterações bem-sucedidas não são motivadoras de uma maior predisposição para tornar o jogo, como disse Van Basten, “melhor e mais honesto”.

Tempos houve – e refiro-me à era moderna do futebol (início das competições europeias) – em que a regra do fora-de-jogo era diferente (em linha era considerado fora de jogo), as substituições não eram permitidas, não havia cartões amarelos nem compensação formal por perda de tempo, ou os guarda-redes poderiam jogar com as mãos a bola atrasada por colegas de equipa. Talvez sejam estas as alterações no futebol mais significativas nas últimas seis décadas(!) e todas representaram um aumento qualitativo do espectáculo futebolístico. Houve várias alterações de pormenor (uso do spray para definir o local de marcação de um livre e a distância da barreira é uma delas), a grande maioria melhorou o jogo e, mesmo assim, é com enorme relutância que sugestões de mudanças das regras são acolhidas, o que me parece insólito. E depois sobra a figura da equipa de arbitragem, imensamente contestada, regularmente alvo de suspeitas e, porque não assumi-lo, frequentemente incapaz de desempenhar a função com sucesso.

É bom dizer que os restantes agentes do jogo não ajudam a arbitragem. As tentativas de condicionamento de árbitros, por vezes a roçar a coacção, são encaradas com normalidade. Os protestos, após prejuízos, e o silêncio, após benefícios, descredibilizam a mensagem quando esta se trata de propostas de melhorias do sector. O fairplay é “uma treta” e a comunicação social, por norma, não se coíbe de elogiar as equipas e/ou jogadores bem-sucedidos, mesmo que o sucesso tenha sido obtido recorrendo ao anti-jogo. O árbitro é sempre considerado o elo mais fraco, desculpabilizando-o desse modo com referências genéricas à dificuldade da função, sem que se perceba o que motiva essas dificuldades e se procure resolvê-las… O erro fará sempre parte do jogo, mas tal não significa que não deva ser reduzido. O futebol, neste aspecto, está muito atrasado em relação a outras modalidades.

Há casos simples, que poderiam ser melhorados facilmente. Uma das maiores dificuldades está relacionada com a área coberta pelo árbitro, que o obriga a acompanhar de perto atletas sobredotados fisicamente e a tomar decisões em décimas de segundo. Em média, nas competições internacionais, o terreno de jogo tem 105 metros de comprimento e 70 metros de largura (7350 m2). Um árbitro principal é auxiliado por dois árbitros nas linhas laterais e há a possibilidade de ter ainda dois árbitros de baliza a apoiá-lo. O chamado quarto árbitro ocupa-se de aspectos não técnicos. Se houver os tais árbitros de baliza, a área por árbitro é 1470 m2. Caso contrário, é 2450m2. Como há 22 jogadores em campo, são 4.4 ou 7.3 por árbitro. No basquetebol, em que há três árbitros de campo, a área de jogo é de 420m2 e há dez atletas em campo, caberá a cada árbitro, grosso modo, cobrir 140m2 e 3.3 jogadores por árbitro. No futsal, são 5 jogadores por árbitro e a área coberta por cada juiz é cerca de 450m2. Dois árbitros fariam um melhor trabalho certamente.

Outro exemplo respeita o tempo de jogo. Todas as modalidades de pavilhão, ao contrário do futebol, preveem a paragem do tempo. Há diferenças entre elas, mas em nenhuma é concedido tempo adicional pela equipa de arbitragem. No basquetebol, o tempo só não pára após um cesto (exceptuando nos últimos dois minutos), no andebol pára sempre que os árbitros entendem que a paragem será mais demorada que o considerado normal para cada situação de jogo, no futsal para em quase todas as situações. O curioso é que, não obstante as diferenças do tempo de jogo entre estas modalidades e as especificidades de cada uma, regra geral os jogos duram cerca de uma hora e 45 minutos, à semelhança do futebol. Jogos de 60 minutos com paragem do relógio em determinadas situações poderia ser a solução contra o anti-jogo.


Finalmente, embora mais exemplos poderiam ser dados, a utilização de ferramentas de apoio à decisão. No basquetebol, o uso de vídeoárbitro é permitido em algumas situações como determinar se a bola foi lançada no tempo de jogo, entre muitas outras. No râguebi há um quarto árbitro que, caso a equipa de arbitragem não chegue a um consenso na avaliação de um lance, poderá socorrer-se de imagens televisivas. No ténis há muitos anos que o “olho de falcão” é utilizado de forma generalizada. Porque não no futebol? Os testes não têm corrido bem, mas aperfeiçoando o uso de tecnologias (aliás, os intercomunicadores são uma boa ferramenta e já são usados), as arbitragens serão melhores e o futebol só terá a ganhar com isso. Pela paixão que desperta e pelo dinheiro que movimenta, o futebol não poderá continuar a resistir ao progresso. Por um futebol melhor e mais honesto!

Vida Económica - 24/2/2017

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