segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

É necessária mais e melhor preparação

Um dos temas recorrentes das minhas crónicas no Vida Económica está relacionado com a forma como o futebol é tratado pelos diversos agentes. Um deles em particular – a comunicação social (desportiva) – tem, do meu ponto de vista, uma dupla responsabilidade: A da promoção, também enquanto parte interessada, uma vez que o mediatismo do fenómeno desportivo influencia certamente a sua facturação; E a da informação, afinal, a sua razão primordial de existência. Uma das suas funções passa pela “contribuição para a correcta formação da opinião pública” e um dos seus deveres por “comprovar a veracidade da informação a ser prestada, recorrendo, sempre que possível, a diversas fontes e garantindo a pluralidade das versões”.

Ora, no que respeita às contas apresentadas pelas SAD do futebol português, os anos de leitura que levo de notícias com elas relacionadas deixam-me céptico quanto à efectiva contribuição para a “correcta formação da opinião pública” e desiludido com a devida “comprovação da veracidade da informação a ser prestada”. Na grande maioria dos casos, as notícias publicadas limitam-se à divulgação das conclusões constantes nos relatórios e à divulgação de declarações públicas de responsáveis dos clubes e/ou SAD, raramente contraditadas ou sequer questionadas.

Já por diversas vezes abordei este assunto com jornalistas “desportivos”. Geralmente, a principal razão apontada para esta postura prende-se com a falta de conhecimentos técnicos sobre contabilidade nas redacções “desportivas”, o que não desculpabilizando o que entendo ser uma lacuna (a qualidade da informação prestada), permite compreender o panorama geral, caracterizado pela impreparação dos jornalistas e pela subsequente mera reprodução do que é comunicado pelos clubes. Aliás, se esta não fosse a justificação, só a relação de forças entre jornalistas e dirigentes, tendencialmente em desfavor dos primeiros, ou mesmo a promiscuidade entre si, explicaria a ausência de contraditório. Nada disto teria grande relevância se, em última instância, não fosse o futebol português o principal prejudicado.

Tomemos o exemplo das contas consolidadas. Em meados de Setembro, o dirigente leonino Carlos Vieira afirmou, no Fórum Nacional do Desporto, que “segundo sei, só Sporting e FC Porto apresentaram contas consolidadas”. A afirmação foi difundida pelos diversos jornais desportivos sem que se esclarecesse os leitores sobre, primeiro, o que são contas consolidadas, segundo, se a afirmação estaria, ou não, correcta, até porque Carlos Vieira, embora tenha deixado a ideia no ar, não afirmara com clareza se o Benfica teria, ou não, contas consolidadas. A julgar pelas recorrentes confusões entre contas das SAD e dos clubes, é natural que não tenha sido explicado o que são, afinal, contas consolidadas, porque quem necessita de ser esclarecido quanto a este conceito são, não só os leitores, mas também quem poderia esclarecê-los, ou seja, os jornais desportivos.

O próprio Benfica, que parece ter assumido, a nível institucional, uma política de comunicação que procura ignorar toda e qualquer acusação do rival leonino, acabou por contribuir para a confusão, pois, como diz o povo, “quem cala consente”. Quem lê e sabe interpretar relatórios e contas, não duvidou que o Benfica tenha contas consolidadas, apesar de ter pairado a ideia de que, afinal, por ausência de esclarecimento, não existiriam.

Através do método de equivalência patrimonial, as contas do Benfica (clube) são, como é evidente e à semelhança de Porto e Sporting, afectadas pelos resultados das suas empresas participadas. No entanto, essa era a única informação prestada e resumia-se a uma única rubrica da demonstração de resultados. Aproveitando a realização da assembleia-geral para aprovação do relatório e contas do clube, a direcção do Benfica não só submeteu o relatório à apreciação dos sócios como divulgou, pela primeira vez, o passivo e o activo consolidados, assim como os forneceu a um semanário que os publicou no dia seguinte e revelou que tentara obter, sem sucesso, a mesma informação da parte do Sporting, prometendo, sem que tenha, passado mês e meio, podido cumprir, que publicaria essa informação assim que fosse prestada pelo clube de Alvalade.

Deste episódio, poderemos extrair pelo menos dois erros comuns na informação veiculada pela comunicação social desportiva acerca de contas. Desde longa a (aparente eterna) confusão entre clubes e sociedades anónimas desportivas. No caso dos “três grandes” do futebol português, o capital das SAD é detido maioritariamente pelos clubes (situação que poderá mudar, no caso da SAD leonina, devido às VMOC). As SAD, apesar do objecto semelhante, são diferentes, nomeadamente a FC Porto, SAD, que inclui apenas 47% do capital da sociedade Euroantas, a detentora do estádio do Dragão, ao contrário da Sporting, SAD e da SL Benfica, SAD, que integram a totalidade do capital das sociedades detentoras dos estádios de Alvalade e Luz, respectivamente (e outros activos).

Esta questão é particularmente relevante, uma vez que é frequente, nos períodos subsequentes à apresentação de contas, a comunicação social proceder à análise comparativa das contas das três SAD. Sendo os estádios, e demais infra-estruturas, parte significativa dos activos, a análise, ignorando esta diferença, está inquinada. E o mesmo se aplica aos passivos, tendo em conta que o serviço de dívida das SAD deriva, em grande medida, das necessidades de capital alheio para os investimentos realizados neste âmbito. Ao desenrolar o novelo, há inúmeras rubricas que se tornam incomparáveis, como os custos financeiros ou as receitas do aluguer de espaços comerciais, entre muitos outros.

Outro erro comum, no que diz respeito às comparações entre contas de cada SAD, passa, também, pela compreensão do perímetro de consolidação de cada uma delas e do que implica consolidar as contas das diversas entidades que compõe cada grupo, neste caso, os clubes. Geralmente, os activos e passivos são somados, ignorando-se as operações intra-grupo, que se anulam. Um dos itens com maior relevância neste domínio refere-se ao direito de uso da marca, cuja duração é, normalmente, muito dilatada no tempo, estendendo-se por décadas. A título de exemplo, o Sport Lisboa e Benfica apresentou, no final do exercício de 2015/16, um passivo de cerca de 98.7 milhões de euros. A Benfica, SAD, que inclui, entre outras, a Benfica TV, a Benfica estádio e a Benfica multimédia, apresentou um passivo, à mesma data, de 455.5 milhões de euros. Após a divulgação destes montantes, foi noticiado que o “grupo Benfica” teria um passivo de cerca de 550 milhões de euros. No entanto, basta ler os relatórios para se perceber que 53.2M€ do passivo do clube referem-se a diferimentos relacionados com o uso da marca. Ou seja, o clube cedeu à SAD o direito do uso da marca Benfica por um período de tempo, cujo valor tem sido e será amortizado anualmente. Da mesma forma, no activo da SAD constará o direito ao uso da marca, pelo que não se pode simplesmente somar activos.

Além deste, há outros exemplos simples (para quem tenha noções de contabilidade), de erros comuns na forma como as finanças dos clubes são tratadas pela comunicação social desportiva. Mas mais grave do que a falta de qualidade da informação é, na minha opinião, o aproveitamento que é feito, por parte dos dirigentes, da ignorância dos jornalistas nesta matéria.

Só para apontar um exemplo de cada “clube grande”, quando, do Benfica, chegou a informação de que se prossegue uma política de devedor disciplinado – respeito escrupuloso dos planos de reembolso de dívidas – a pergunta que deveria ser imediatamente colocada seria, dadas as receitas recorde, se não se deveria abater passivo para que os elevados juros suportados não continuem a condicionar a capacidade de investimento da SAD benfiquista. Quando Fernando Gomes evocou eventuais propostas de compra do passe de três atletas do futebol portista para minimizar o impacto das piores contas alguma vez apresentadas pela FCP, SAD, além de se estranhar a ausência de comunicação à CMVM das ditas propostas, dever-se-ia avaliar imediatamente a plausibilidade dessa declaração e as eventuais consequências dessa decisão, nomeadamente quanto ao fairplay financeiro da UEFA. E quando Bruno de Carvalho, questionado acerca de um qualquer assunto relacionado com as contas, se desfaz em auto-elogios ou opta por acusações a outros sportinguistas ou a outras entidades, as perguntas deveriam ser novamente colocadas até que uma resposta à pergunta fosse dada. E, já agora, quanto à FPF, como foi calculado o impacto na economia portuguesa da conquista no último europeu…


Com uma comunicação social desportiva mais preparada, seria possível escrutinar a acção dos dirigentes e a gestão das entidades desportivas e, com isso, ganhariam os adeptos, os clubes e o desporto em geral.

Vida Económica - 25/11/2016

Números da semana (171)

1 O Benfica conquistou, pela 1ª vez, a Taça FAP de andebol no feminino; 3 Di María isolou-se na 3ª posição do ranking dos goleadores b...