Um dos temas recorrentes das minhas crónicas no Vida
Económica está relacionado com a forma como o futebol é tratado pelos diversos
agentes. Um deles em particular – a comunicação social (desportiva) – tem, do
meu ponto de vista, uma dupla responsabilidade: A da promoção, também enquanto
parte interessada, uma vez que o mediatismo do fenómeno desportivo influencia
certamente a sua facturação; E a da informação, afinal, a sua razão primordial de
existência. Uma das suas funções passa pela “contribuição para a correcta
formação da opinião pública” e um dos seus deveres por “comprovar a veracidade
da informação a ser prestada, recorrendo, sempre que possível, a diversas
fontes e garantindo a pluralidade das versões”.
Ora, no que respeita às contas apresentadas pelas SAD do
futebol português, os anos de leitura que levo de notícias com elas
relacionadas deixam-me céptico quanto à efectiva contribuição para a “correcta
formação da opinião pública” e desiludido com a devida “comprovação da
veracidade da informação a ser prestada”. Na grande maioria dos casos, as
notícias publicadas limitam-se à divulgação das conclusões constantes nos
relatórios e à divulgação de declarações públicas de responsáveis dos clubes
e/ou SAD, raramente contraditadas ou sequer questionadas.
Já por diversas vezes abordei este assunto com jornalistas
“desportivos”. Geralmente, a principal razão apontada para esta postura
prende-se com a falta de conhecimentos técnicos sobre contabilidade nas
redacções “desportivas”, o que não desculpabilizando o que entendo ser uma
lacuna (a qualidade da informação prestada), permite compreender o panorama
geral, caracterizado pela impreparação dos jornalistas e pela subsequente mera
reprodução do que é comunicado pelos clubes. Aliás, se esta não fosse a
justificação, só a relação de forças entre jornalistas e dirigentes,
tendencialmente em desfavor dos primeiros, ou mesmo a promiscuidade entre si,
explicaria a ausência de contraditório. Nada disto teria grande relevância se,
em última instância, não fosse o futebol português o principal prejudicado.
Tomemos o exemplo das contas consolidadas. Em meados de
Setembro, o dirigente leonino Carlos Vieira afirmou, no Fórum Nacional do
Desporto, que “segundo sei, só Sporting e FC Porto apresentaram contas
consolidadas”. A afirmação foi difundida pelos diversos jornais desportivos sem
que se esclarecesse os leitores sobre, primeiro, o que são contas consolidadas,
segundo, se a afirmação estaria, ou não, correcta, até porque Carlos Vieira,
embora tenha deixado a ideia no ar, não afirmara com clareza se o Benfica
teria, ou não, contas consolidadas. A julgar pelas recorrentes confusões entre
contas das SAD e dos clubes, é natural que não tenha sido explicado o que são,
afinal, contas consolidadas, porque quem necessita de ser esclarecido quanto a
este conceito são, não só os leitores, mas também quem poderia esclarecê-los,
ou seja, os jornais desportivos.
O próprio Benfica, que parece ter assumido, a nível
institucional, uma política de comunicação que procura ignorar toda e qualquer
acusação do rival leonino, acabou por contribuir para a confusão, pois, como
diz o povo, “quem cala consente”. Quem lê e sabe interpretar relatórios e
contas, não duvidou que o Benfica tenha contas consolidadas, apesar de ter pairado
a ideia de que, afinal, por ausência de esclarecimento, não existiriam.
Através do método de equivalência patrimonial, as contas do Benfica
(clube) são, como é evidente e à semelhança de Porto e Sporting, afectadas
pelos resultados das suas empresas participadas. No entanto, essa era a única
informação prestada e resumia-se a uma única rubrica da demonstração de
resultados. Aproveitando a realização da assembleia-geral para aprovação do
relatório e contas do clube, a direcção do Benfica não só submeteu o relatório
à apreciação dos sócios como divulgou, pela primeira vez, o passivo e o activo
consolidados, assim como os forneceu a um semanário que os publicou no dia
seguinte e revelou que tentara obter, sem sucesso, a mesma informação da parte
do Sporting, prometendo, sem que tenha, passado mês e meio, podido cumprir, que
publicaria essa informação assim que fosse prestada pelo clube de Alvalade.
Deste episódio, poderemos extrair pelo menos dois erros
comuns na informação veiculada pela comunicação social desportiva acerca de
contas. Desde longa a (aparente eterna) confusão entre clubes e sociedades
anónimas desportivas. No caso dos “três grandes” do futebol português, o
capital das SAD é detido maioritariamente pelos clubes (situação que poderá
mudar, no caso da SAD leonina, devido às VMOC). As SAD, apesar do objecto
semelhante, são diferentes, nomeadamente a FC Porto, SAD, que inclui apenas 47%
do capital da sociedade Euroantas, a detentora do estádio do Dragão, ao
contrário da Sporting, SAD e da SL Benfica, SAD, que integram a totalidade do
capital das sociedades detentoras dos estádios de Alvalade e Luz, respectivamente
(e outros activos).
Esta questão é particularmente relevante, uma vez que é
frequente, nos períodos subsequentes à apresentação de contas, a comunicação
social proceder à análise comparativa das contas das três SAD. Sendo os
estádios, e demais infra-estruturas, parte significativa dos activos, a
análise, ignorando esta diferença, está inquinada. E o mesmo se aplica aos
passivos, tendo em conta que o serviço de dívida das SAD deriva, em grande
medida, das necessidades de capital alheio para os investimentos realizados
neste âmbito. Ao desenrolar o novelo, há inúmeras rubricas que se tornam
incomparáveis, como os custos financeiros ou as receitas do aluguer de espaços
comerciais, entre muitos outros.
Outro erro comum, no que diz respeito às comparações entre
contas de cada SAD, passa, também, pela compreensão do perímetro de
consolidação de cada uma delas e do que implica consolidar as contas das
diversas entidades que compõe cada grupo, neste caso, os clubes. Geralmente, os
activos e passivos são somados, ignorando-se as operações intra-grupo, que se
anulam. Um dos itens com maior relevância neste domínio refere-se ao direito de
uso da marca, cuja duração é, normalmente, muito dilatada no tempo,
estendendo-se por décadas. A título de exemplo, o Sport Lisboa e Benfica
apresentou, no final do exercício de 2015/16, um passivo de cerca de 98.7
milhões de euros. A Benfica, SAD, que inclui, entre outras, a Benfica TV, a
Benfica estádio e a Benfica multimédia, apresentou um passivo, à mesma data, de
455.5 milhões de euros. Após a divulgação destes montantes, foi noticiado que o
“grupo Benfica” teria um passivo de cerca de 550 milhões de euros. No entanto,
basta ler os relatórios para se perceber que 53.2M€ do passivo do clube
referem-se a diferimentos relacionados com o uso da marca. Ou seja, o clube
cedeu à SAD o direito do uso da marca Benfica por um período de tempo, cujo
valor tem sido e será amortizado anualmente. Da mesma forma, no activo da SAD
constará o direito ao uso da marca, pelo que não se pode simplesmente somar
activos.
Além deste, há outros exemplos simples (para quem tenha
noções de contabilidade), de erros comuns na forma como as finanças dos clubes
são tratadas pela comunicação social desportiva. Mas mais grave do que a falta
de qualidade da informação é, na minha opinião, o aproveitamento que é feito,
por parte dos dirigentes, da ignorância dos jornalistas nesta matéria.
Só para apontar um exemplo de cada “clube grande”, quando,
do Benfica, chegou a informação de que se prossegue uma política de devedor
disciplinado – respeito escrupuloso dos planos de reembolso de dívidas – a
pergunta que deveria ser imediatamente colocada seria, dadas as receitas
recorde, se não se deveria abater passivo para que os elevados juros suportados
não continuem a condicionar a capacidade de investimento da SAD benfiquista.
Quando Fernando Gomes evocou eventuais propostas de compra do passe de três
atletas do futebol portista para minimizar o impacto das piores contas alguma
vez apresentadas pela FCP, SAD, além de se estranhar a ausência de comunicação
à CMVM das ditas propostas, dever-se-ia avaliar imediatamente a plausibilidade
dessa declaração e as eventuais consequências dessa decisão, nomeadamente
quanto ao fairplay financeiro da UEFA. E quando Bruno de Carvalho, questionado
acerca de um qualquer assunto relacionado com as contas, se desfaz em
auto-elogios ou opta por acusações a outros sportinguistas ou a outras
entidades, as perguntas deveriam ser novamente colocadas até que uma resposta à
pergunta fosse dada. E, já agora, quanto à FPF, como foi calculado o impacto na
economia portuguesa da conquista no último europeu…
Com uma comunicação social desportiva mais preparada, seria
possível escrutinar a acção dos dirigentes e a gestão das entidades desportivas
e, com isso, ganhariam os adeptos, os clubes e o desporto em geral.
Vida Económica - 25/11/2016