terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Futebol online

Quando quero referir-me a algo ou alguém que não cabe no tema da minha crónica, geralmente remeto-o para o último parágrafo, quase à laia de notas finais. No entanto, hoje decidi inverter essa tendência estilística e começo por um elogio aos diários desportivos, em particular ao jornal A Bola. Para tal terei que recuar dois anos e resumir significativamente o que escrevi em Agosto de 2015.

Na altura critiquei os diários desportivos por dedicarem quase exclusivamente as suas primeira páginas ao futebol. Referi as razões que julgo estarem na base dessa opção editorial e sublinhei que as compreendo – nomeadamente a necessidade de vendas no curto prazo, o que lhes coarcta o estímulo de novos públicos no futuro para que eventualmente estanquem a perda de leitores. Raros, ou mesmo inexistentes, terão sido os exemplos de uma primeira página desde então em que o destaque não tenha sido dado ao futebol e, por isso, sinto-me obrigado, embora sem qualquer favor, a louvar o A Bola por, na passada segunda-feira, nos ter presenteado com a parangona “rainha do sofrimento” e uma imagem de Inês Henriques, que se sagrou campeã do mundo e bateu o recorde mundial dos 50 Kms marcha, do topo ao fundo da sua primeira página. Nas restantes chamadas de capa (cinco), constou o futebol e qualquer delas, num dia normal, poderia ter sido o tema de capa principal. Também o Record, no terço superior da primeira página, destacou o feito de Inês Henriques, e o Jogo, embora mais comedido e também no topo, o fez. Porém, a novidade (nestes últimos anos) esteve na primeira página quase unicamente dedicada a um assunto que não o futebol pelo jornal A Bola, daí o meu elogio público, esperando que as suas vendas, nesse dia, não tenham, pelo menos, sido menores que o costume.

Mas quem tem a gentileza de ler as minhas crónicas sabe que também costumo criticar a imprensa desportiva pela pouca atenção prestada ao lado do negócio do futebol e quase nunca à antecipação de cenários originados por determinados acontecimentos nesse domínio. Na semana passada tivemos mais um destes casos: o anúncio do lançamento, em vários países (Brasil, México, Argentina, Estados Unidos da América, Espanha, Itália, Alemanha, França e Inglaterra), de uma plataforma tecnológica que poderá reconfigurar o consumo do desporto enquanto produto televisivo, o Sportflix.

À semelhança do Netflix numa fase inicial (entretanto já evoluiu), o Sportflix não terá produção própria, limitando-se a retransmitir produtos de outras estações. Promete incluir na sua oferta alguns dos conteúdos mais apelativos, como os campeonatos de futebol de Inglaterra, França, Itália, Alemanha e Espanha (entre outros, mas não o português…), ou a NBA, a NFL, o UFC, a Fórmula 1 e os Jogos Olímpicos. Terá uma mensalidade de 17€ para os clientes domésticos e 21€ para empresas e poderá ser acedido de qualquer aparelho com acesso à internet (por exemplo, o pacote premium da Sporttv, na NOS, tem um custo mensal de 28€).

Tendo em conta os novos hábitos de consumo de produtos televisivos, em particular dos mais jovens, cuja propensão para o fazerem através de dispositivos móveis é notória, o Sportflix, se conseguir realmente disponibilizar os conteúdos prometidos (há dias surgiu o comunicado da Fox Sports América Latina, que alega ter 61 milhões de clientes em 19 países, a desmentir categoricamente quaisquer contactos ou negociação com a Sportflix para a cedência de direitos televisivos), poderá tornar-se rapidamente, se não encarada como tal já, na ameaça mais significativa aos canais televisivos dedicados ao desporto.

É previsível que, numa fase inicial e à semelhança do que se sucedeu com a Netflix, haja resistência por parte dos maiores operadores, não cedendo conteúdos e tentando inviabilizar o acesso em vários países. Porém, partindo do pressuposto que a Sportflix terá músculo financeiro para criar uma base de clientes que lhe permita exponenciar a sua capacidade de investimento, mais cedo ou mais tarde tentará intrometer-se na disputa pelos conteúdos e assumirá as despesas de produção. O mais provável é que esse passo, a ser dado, vise nichos de mercado numa primeira instância, mas uma vez suplantadas as dificuldades iniciais, o futuro tornar-se-á imprevisível.

Até porque, apesar de não ter encontrado qualquer referência na comunicação social portuguesa, já existe um operador deste género lançado há um ano, a DAZN, disponível na Alemanha, Áustria, Suíça e, recentemente, Canadá e Japão (anuncia ter transmitido em directo cerca de 8000 eventos desportivos). Se no Canadá, no qual só há um mês passou a estar disponível, se limitará ao futebol americano numa fase inicial, na Alemanha tem as ligas de futebol inglesa, espanhola, francesa e italiana (além de resumos da liga alemã) como produtos estrela. De acordo com uma notícia, a partir de 2018/19 transmitirá também a Liga dos Campeões, enquanto que, no Japão, terá a liga japonesa de futebol.

A estratégia da DAZN é assumida: Criar uma base de clientes que lhe permita, juntamente com anunciados dois biliões de dólares reservados para a sua segunda fase de desenvolvimento, proceder à adquisição de conteúdos exclusivos. A Netflix, que em Junho anunciou ter alcançado 100 milhões de utilizadores, também começou timidamente, porém foi com produtos exclusivos, como as séries “House of cards”, “Orange is the new black”, “Narcos” ou “Stranger things”, entre outras, que obteve um grande impulso nas suas vendas, não só pelas subscrições do serviço como até pela revenda das séries, como é o caso da “House of Cards” à SIC e posteriormente à TVSéries em Portugal.

Fazendo a ponte para a conjuntura futebolística nacional, ressaltam dois aspectos pouco ou nada focados. Por um lado, a cedência dos direitos televisivos por parte dos clubes às operadoras que, não obstante os elevados montantes conseguidos tendo em conta os contratos anteriores (Porto e Sporting quase triplicaram a sua facturação e Benfica quintuplicou relativamente ao período anterior ao que explorou por sua conta os seus direitos televisivos), são todos de longa duração (Benfica – de 2016/17 até 2025/26, Porto e Sporting de 2018/19 até 2027/28) e incluem todas as plataformas, o que significa que, dada a evolução tecnológica cada vez mais acelerada nesta área, representa um risco significativo no que concerne à comparação entre facturação e potencial de facturação, nomeadamente nos últimos anos de vigência destes contratos.

Por outro lado, Porto e Sporting já anteciparam receitas de direitos televisivos cuja entrada em vigor ainda nem sequer ocorreu: No caso portista, foi a antecipação de 18,6M€ a receber da Altice, com início em 31/12/2018, em dez prestações mensais de 2.666.667 euros (relatórios e contas do 1º semestre de 2016/17); No caso do Sporting, tendo por base o relatório do 1º semestre de 2016/17, esse montante ascendeu a 4,75 milhões de euros (“A rúbrica de cedência de créditos futuros decorre do montante não corrente relacionado com antecipação de receitas sem recurso, do contrato celebrado com a NOS, realizada com uma entidade bancária no primeiro trimestre da presenta época”). No relatório seguinte, o montante desta rúbrica cresceu para 21,057 milhões de euros, se bem que não explicita tratar-se de direitos televisivos (“A rúbrica de cedência de créditos futuros decorre do montante não corrente relacionado com antecipação de receitas sem recurso”), embora seja o mais provável, na minha opinião.


A antecipação de receitas operacionais indicia dificuldades de tesouraria e faz transparecer um investimento excessivo face à capacidade de angariação de receitas. Se o sucesso desportivo acontecer, é provável que as receitas cresçam (em que medida é outra questão), caso contrário… Mas o problema não se esgota por aqui. Perpetuando-se em crescendo, como uma bola de neve, os gastos acima dos proveitos, há-de chegar uma altura em que não mais poderão ser antecipadas receitas de direitos televisivos (porque já o foram na sua totalidade), a não ser que um novo contrato, ou a extensão do vigente, seja negociado. Como é evidente, nesse contexto, a posição negocial do(s) clube(s) estará enfraquecida e as consequências são, ao contrário do futuro das plataformas online de distribuição de conteúdos desportivos, bastante previsíveis. Basta ver o que aconteceu ao Benfica quando vendeu à pressa os direitos televisivos em 1993 e, anos mais tarde, quando durante anos recebeu cerca de metade dos rivais por optar por não renegociar o contrato então em vigor e esperar por uma posição negocial mais forte. É certo que lhe permitiu tornar a BTV num canal de subscrição e hipervalorizar, face ao passado, os seus direitos televisivos (e os dos seus rivais), mas os anos de espera – poucos títulos – não foram os mais felizes para os seus adeptos.

Vida Económica - 25/8/2017

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