segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Em defesa da comunicação social desportiva

Quando, há já mais de dois anos, iniciei esta aventura de escrever sobre o chamado “futebol negócio”, tive como uma das principais motivações a constatação de que o tema é abordado rara e grosseiramente pela generalidade da comunicação social, em particular a desportiva.

O desconhecimento de conceitos básicos relacionados com as contas dos clubes é gritante e essa lacuna permanece inalterada. Ainda recentemente, e só para dar um exemplo simples, o administrador da SAD benfiquista Domingos Soares Oliveira afirmou, numa entrevista colectiva a propósito da emissão de um empréstimo obrigacionista, que “a SAD do Benfica reduziu o endividamento financeiro em 13 milhões de euros no primeiro semestre”. Um dos diários desportivos citou-o e “informou” que o Benfica reduziu a dívida em 13 milhões de euros desde Janeiro, ignorando ou esquecendo que, nas SAD, o primeiro semestre corresponde ao período entre o início de Junho e fim de Dezembro e que, como é evidente, este dado consta no relatório e contas semestral correspondente a esse período, o qual foi objecto de notícia da mesma publicação no mês anterior (salvo raras excepções, estas peças jornalísticas limitam-se à cópia das conclusões dos relatórios).

Porém, o “futebol negócio” não se limita aos aspectos económico financeiros e, por isso, tenho discorrido sobre diversos assuntos, nos quais se inclui o papel dos media enquanto agentes simultaneamente promotores e interessados na promoção do desporto e do futebol em particular. A questão é simples: Quanto maior for o interesse por futebol, mais consumidores existirão para os meios que prestam informação sobre futebol. No entanto, se há uns anos se poderia considerar linear a relação entre consumidores e proveitos neste sector, o advento da internet resultou na diminuição dos hábitos de leitura e na transformação do consumo da televisão, introduzindo disrupção nessa equação.

A reacção dos media a este fenómeno passou, compreensivelmente, por tentar tornar o seu produto mais apetecível a uma base mais alargada de consumidores (e pelo caminho reduzir custos de mão-de-obra). Passou a privilegiar a polémica em detrimento da informação, condensou as peças e baixou os níveis de qualidade do seu produto, conseguindo (será?) chegar a leitores, ouvintes e telespectadores que outrora e presumivelmente não se interessariam por conteúdos extensos. O problema é que tal não pareceu resolver o problema de fundo (queda das receitas) e poderá, a médio/longo prazo, contribuir para o desinteresse generalizado pelo futebol nacional.

No entanto, justo será dizer que os clubes são os principais responsáveis por esta situação. Partindo do princípio, que me parece lógico, que estes são os maiores interessados na promoção do produto futebol, é inconcebível que sejam os dirigentes a fomentar a polémica e a impedir, à comunicação social, o acesso livre aos verdadeiros protagonistas: os treinadores e, principalmente, os jogadores.

Começa logo pelas regras limitativas de acesso aos jogadores: Só é obrigatório que um jogador, a seguir aos jogos, seja entrevistado se houver transmissão televisiva. Já não vou ao ponto de exigir que se estude o que se faz no desporto americano, em que, além da participação de pelo menos dois jogadores nas conferências de imprensa, os jornalistas, mediante determinadas regras, têm acesso ao balneário das equipas e aos jogadores após as partidas e a possibilidade de entrevistarem os atletas imediatamente após os treinos, no recinto em que estes se realizaram. Mas, por exemplo, na Liga dos Campeões, além do flash interview prever a participação de dois jogadores, há a chamada zona mista, em que os jogadores podem ser entrevistados. Outro bom exemplo é do futebol francês e também do brasileiro, em que há a possibilidade de colocar perguntas a um jogador de cada equipa no intervalo do jogo. Em Portugal, nada disto é possível e, para agravar a situação, é raríssimo que os departamentos de comunicação autorizem os jogadores a darem entrevistas ao longo da época.

Perante um cenário destes, o que sobra aos media para que não se tornem em meros anunciantes de resultados ou em instrumentos à disposição dos clubes para a propaganda e o condicionamento da opinião pública? Naturalmente, a polémica, que até se diz vender, sob as mais diversas formas: Parangonas inflamadas e incendiárias emanadas de soundbytes criteriosamente concebidos; Análise exaustiva à actuação dos árbitros; Discussão sobre o sexo dos anjos e berraria avulsa e insultuosa; (...) E o futebol? Repare-se no último clássico disputado há duas semanas entre Benfica e F.C.Porto…

Os mais distraídos poderão ficar surpreendidos, mas tratou-se de um grande jogo. Disputado intensa e lealmente por ambas as equipas, imperou a incerteza no resultado até ao apito final. Foi uma excelente propaganda ao futebol, deixou a questão do título em aberto e, imagine-se, foi bem arbitrado por Carlos Xistra. O que sobrou? Opiniões dos jogadores? Análises técnicas e tácticas? Elogios às equipas? Não, claro que não… Antes uma discussão estéril e pueril sobre se Jonas terá procurado o contacto num lance que resultou em grande penalidade evidente a favor do Benfica, uma falta de Maxi Pereira no lance do golo portista que, apesar de ter realmente existido, ninguém a descortinou no campo ou mesmo na televisão em directo, uma rábula acerca dos bilhetes que se demonstrou não ter razão de ser, uma suposta agressão de Jonas a Nuno Espírito Santo que nem sequer ao próprio treinador portista mereceu qualquer comentário, as participações do Sporting acerca do que entendeu serem atitudes incorrectas do médio benfiquista Samaris e outras questões menores que nada acrescentam e menos se justificam.

Será que os clubes percebem que os jogadores são os verdadeiros protagonistas e que estes, ao invés de surgirem unicamente em sessões de autógrafos no âmbito de eventos de patrocinadores, poderiam contribuir decisivamente para a promoção do futebol caso não lhes fosse vedada a possibilidade de falarem quando e como bem entendessem? É que, além de serem raras as suas declarações, o controlo a que são submetidos resulta em mensagens estereotipadas, desprovidas de conteúdo, irrelevantes e desinteressantes. Tempos houve em que os jogadores falavam livremente e que, apesar de quando em vez incomodarem os clubes que representavam por qualquer declaração irreflectida, na maior parte dos casos só tornavam o produto futebol mais apetecível. O leitor que experimente consultar uma edição de um diário desportivo publicada nos anos 80 e perceberá imediatamente a diferença.

Estarei eu a suplicar por um mundo idílico para os adeptos ou a deixar-me enredar em anacronismos? Não me parece. E não desejo que das minhas palavras se subentenda que defendo a atribuição de um papel acrítico à comunicação social. As polémicas são, por definição, interessantes para o grande público. A diferença reside no tipo de polémica e se estas poderão pôr em causa o interesse pelo jogo e a capacidade dos clubes granjearem receitas no futuro. Mais uma vez me socorro do caso americano, convicto de que em lado algum no mundo se vende melhor o desporto.

Que não haja quaisquer dúvidas quanto à preparação dos jogadores profissionais americanos para enfrentarem as perguntas dos jornalistas. Os departamentos de comunicação são constituídos por inúmeros profissionais, que trabalham exaustivamente a mensagem que deverá ser passada, além de definirem e imporem regras de orientação aos jogadores e aplicarem sanções caso estas não sejam cumpridas. Tentam condicionar o que os atletas dirão aos jornalistas, mas é-lhes inconcebível a ideia de que os deverão silenciar porque entendem e aceitam que são os jogadores quem tem a capacidade de atrair, de forma benigna, a atenção do público.

Entre os milhentos exemplos que poderia evocar, referirei um da NBA em que o protagonista foi Russel Westbrook, uma das mais aclamadas vedetas do basquetebol na actualidade. Após um jogo em que esteve muito abaixo do seu valor e a sua equipa foi copiosamente derrotada por um adversário acessível, a generalidade da comunicação social acusou-o de ter sido o culpado da má exibição colectiva por não ter sido capaz de executar competentemente as jogadas. Na partida seguinte, em que esteve a grande nível, decidiu fazer uma birra na sessão aberta aos jornalistas em pleno balneário. A cada pergunta que lhe foi colocada, e não foram poucas, respondeu sempre que a vitória se deveu à execução. Melhor dizendo, apesar de ir variando a entoação da palavra, respondeu somente “execução”. O vídeo original desta entrevista colectiva está no youtube e tem quase quatro milhões de visualizações, sem contar com as de dezenas de reproduções no youtube e noutras plataformas. No fim, ganhou o produto NBA, com a notoriedade que esta entrevista conquistou.


Em Portugal, um caso destes seria impossível. O futebol é mal tratado por quem o dirige e a comunicação social, sendo primeiro vítima, acaba por ser conivente com quem, por questões imediatistas e em interesse próprio, o prejudica seriamente. Dar o protagonismo a quem o merece – os jogadores – é essencial!

Vida Económica - 21/4/2017

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